12.12.06

o general e o futebol


O Estádio Nacional, em Santiago, é o principal estádio do Chile, e durante a ditadura Pinochet virou uma espécie de campo de concentração.
Clayton Netz, jornalista, viveu exilado no Chile entre 1971 e 1973, e ficou preso lá.
Transcrevo abaixo o seu depoimento, publicado no dia 11 no Estadão.

"Entrei no Estádio Nacional do Chile em 2 de outubro de 1973, numa manhã ensolarada de primavera. Era a segunda vez que visitava o principal templo do sofrível futebol chileno desde meu desembarque em Santiago, dois anos antes. Na primeira ocasião, fora assistir à festa de despedida de Fidel Castro, com direito a um de seus quilométricos discursos. Dessa vez, no entanto, não estava ali por vontade própria. A bordo de uma camionete, chegara escoltado por três detetives da central da Polícia Civil do Chile. O Estádio Nacional fora transformado num campo de concentração onde estavam confinados milhares de trabalhadores, intelectuais e membros dos partidos de esquerda, detidos desde as primeiras horas do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende.
Como a maior parte das centenas de estrangeiros que lá estavam, o motivo da minha prisão foi exatamente o fato de ser estrangeiro - o golpe desencadeara uma onda xenofóbica nunca vista. Além de ser brasileiro, asilado, era portador de material altamente subversivo, no entender dos Carabineros (policiais militares): os livros Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, e Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenitsin...
Tão logo os policiais civis me entregaram aos militares, fui conduzido junto a um grupo de presos recém-chegados a uma ala na parte inferior do estádio, onde deveriam ficar os prisioneiros que ainda teriam de passar por interrogatório.
Como sinal de boas-vindas, não nos serviram nada para comer nas primeiras 24 horas. O mesmo tipo de gentileza foi reproduzido na hora de dormir: amontoados, tivemos de nos estender sobre o ladrilho frio do vestiário.
Depois de meu interrogatório, meus inquiridores recomendaram 'liberdade condicional'. Imaginei que em pouco tempo estaria em casa novamente. Engano. A recomendação valia apenas para os chilenos, que iam sendo liberados em doses homeopáticas diariamente.
O jeito foi nos munir de paciência à espera de que a pressão internacional fizesse com que os militares nos liberassem. Àquela altura, os organismos internacionais como o Alto Comissariado da ONU para Refugiados e entidades como a Cruz Vermelha já haviam conseguido furar o bloqueio dos militares, entrando no estádio e fazendo contato com os prisioneiros. Com isso, diminuía a possibilidade de desaparecimentos ou fuzilamentos, como aconteceu nos dias imediatamente seguintes ao golpe. O que não impediu que um dos presos, o ex-capitão da PM de São Paulo Vânio José de Matos, diagnosticado com uma grave infecção intestinal, acabasse morrendo por falta de tratamento adequado. Ou que agentes do Cenimar, o serviço de inteligência da Marinha do Brasil, tenham recebido livre acesso para interrogar alguns brasileiros, ao mesmo tempo em que brindavam seus colegas chilenos com uma aula prática de pau-de-arara, usando como cobaia um de nossos companheiros.
A chegada do Cenimar aconteceu nas últimas semanas da nossa permanência no campo de concentração. Logo voltamos à rotina de todos os dias: acordar, tomar o café insatisfatório, ficar sentados nas arquibancadas do estádio o resto do dia, com uma breve interrupção para o almoço. Nos intervalos, inclusive à noite, passávamos o tempo conversando ou então assistindo ou participando de shows organizados pelos prisioneiros.
Nossa saída, no começo de novembro, foi precipitada por um fato não previsto pelos militares: a proximidade da partida entre a Seleção do Chile e a da então União Soviética, pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1974. Pressionados pela FIFA, que, inclusive, enviou uma delegação para verificar se o Estádio Nacional estava sendo utilizado como campo de prisioneiros - desnecessário dizer que os militares tentaram 'esconder' os detidos, trancando-os nos vestiários -, tiveram de esvaziá-lo a toque de caixa, enviando os presos para outros locais ou entregando-os à proteção da ONU, como foi o nosso caso."

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